A Reconstrução de Santa Auta
Em 2019, durante as nossas primeiras conversas com a Direção do Museu Nacional do Azulejo, foi-nos endereçada a seguinte questão: é possível criar reconstruções digitais 3D a partir de imagens em pinturas? Em causa estava a imagem de Santa Auta, uma das onze mil virgens que acompanharam (segundo a lenda) Santa Ursula em peregrinação (1458-1525) pela Europa. Para responder a esta questão, optámos por desenvolver a nossa própria versão da imagem a partir da obra “Chegada das Relíquias à Madre de Deus” (1522). Esta integra o retábulo de Santa Auta, originalmente composto por cinco pinturas que retratam a chegada das relíquias da santa de Colóni ao primevo Mosteiro da Madre de Deus.
“Chegada das Relíquias à Madre de Deus”, artista desconhecida, 1522.
Grosso modo, existem dois processos para gerar objetos 3D a partir de uma única foto: extrusões de áreas (heightfields) possíveis em programas como o Rhinoceros 3D e “varreduras” (sweeps) possíveis em programas como o 3-Sweep. No primeiro caso, a malha digital criada é, apenas, uma reconstrução 2.5D porque o fundo da imagem é, também, extrudido, juntamente com a imagem. Cada pixel armazena valores de elevação baseados em cor. Porque a profundidade (e a cor) numa pintura é resultado da perceção do artista, e não baseada na medição da profundidade real (como a profundidade registada em fotografias), os resultados são muito irregulares. No segundo caso, a reconstrução 3D de uma imagem 2D apenas é possível se a imagem for simétrica. Portanto, é adequada para capturar objectos representados em perfil. Tal não é o caso da imagem de Santa Auta na pintura “Chegada das Relíquias à Madre de Deus” e por este motivo, esta opção não se revelou viável.
Três iterações de Santa Auta utilizando o comando heightfield do programa Rhinoceros 3D.
O melhor resultado obtido foi através da 3D selfie app, desenhada pelos investigadores das universidades de Nottingham e de Kingston. A sua aplicação web permite ao utilizador reconstruir o seu próprio rosto em 3D a partir do carregamento de uma única imagem 2D a cores. Embora os resultados de Santa Auta fossem menos satisfatórios vindos de uma pintura do que de uma fotografia, o modelo gerado reteve o suficiente das proporções geométricas da figura (o rosto) para que fosse possível utilizá-lo como base.
A face de Santa Auta reconstruída pela 3D selfie app.
Seguindo esta geometria rudimentar, a face de Santa Auta foi suavizada no programa ZBrush, ambiente onde foi modelada a totalidade da figura. ZBrush é um programa profissional de escultura digital, de alta resolução, utilizado por artistas na produção de filmes e videojogos. Neste ambiente, uma imagem de referência pode ser inserida, como uma camada transparente, em frente da área de escultura. Por este processo, conseguimos captar expressões faciais, proporções gerais da figura, bem como detalhes intrincados do vestuário e das jóias. Embora esta abordagem tenha facilitado muito a modelação de algumas formas, muitas outras dificuldades surgiram ao tentar traduzir a profundidade do objecto e capturar alguns dos gestos físicos complexos expressos pelo artista. Por exemplo, a coroa era difícil de interpretar literalmente a partir da pintura, porque a sua forma produziria uma base oval em vez de circular. Assim, a coroa foi reinterpretada como uma série de unidades simétricas repetitivas em torno de uma base circular. Por isso, a modelação da coroa exigiu uma abordagem mais híbrida. A cabeça da santa foi importada para o Rhinoceros 3D e a coroa foi modelada, dentro deste programa, para controlar mais facilmente a geometria. A relação da mão esquerda, do livro e do braço constituiu outro exemplo. Aqui, a dificuldade em transcrever, para um objeto 3D, a postura expressa na pintura resultou nalgumas discrepâncias entre as duas representações. Esperamos resolvê-las em futuras iterações da figura. Como o modelo final não resultou de um processo automatizado, os resultados são, talvez, menos “cientificamente” precisos do que inicialmente esperado. Apesar disso, a aprendizagem de ZBrush provou ser vantajosa. A ferramenta permitirá desenvolver a nossa capacidade de edição digital para malhas fotogramétricas e de modelação de figuras 3D, essencial aos nossos projectos de reconstrução digital.
Model final de Santa Auta – ambiente ZBrush.
Seguidamente à fase de modelação digital, explorámos o processo FFF (Fused Filament Fabrication) para testar fluxos de trabalho adequados à impressão 3D de figuras. O principal desafio – produzir uma figura que pudesse reproduzir os intrincados detalhes do modelo digital – passava por minimizar, tanto quanto possível, a necessidade de suportes durante o processo de impressão.
A figura possui muitas partes destacadas e em balanço, tal como os braços e as mãos, além dos objetos que estas agarram; e, na delicada parte do rosto, é de assinalar o queixo e a proeminência do nariz. A existência de suportes, sobretudo no rosto, seria de evitar pois corríamos o risco de, durante a sua remoção, desfigurar a expressão.
Para tal, o modelo foi segmentado. As mãos e os objetos (livro e setas) foram autonomizados e criados orifícios para posterior encaixe das mãos no modelo principal. A posição dos modelos durante o processo de impressão é, também, outro fator relevante para minimizar suportes.
Por isso, a posição horizontal – de costas – revelou-se a mais vantajosa, pois permitia, também, preservar os detalhes das vestes, concentrados na parte da frente da figura.
O teste realizado considerou uma figura com 15cm de altura e parâmetros de impressão genéricos (e.g., extrusor 0.4mm; altura de camada 0.2mm; enchimento 10%) visando minimizar o tempo de impressão, o qual, apesar de tudo, ainda se prolongou durante 6h 18mn.
Modelo St. Auta sendo impresso em 3D, na horizontal, com suportes na parte posterior do modelo.
Modelo de Santa Auta após a impressão.
Mão separada, impressa em 3D, do modelo de Santa Auta.
Os detalhes das vestes resultaram imperceptíveis e, apesar da geometria geral ter sido registada, foi possível concluir que será vantajoso, em próximos testes, diminuir a altura das camadas de impressão, visando um acabamento mais suave e contínuo das superficies e, eventualmente, aumentar a dimensão da figura.
Modelo final de Santa Auta, impresso em 3D.
Com espírito de doação, inspirado pela pintura original, a nossa escultura de Santa Auta foi oferecida ao museu. A escultura acompanhou o nosso modelo preliminar, impresso em 3D, relativo à reconstrução do primitivo claustrim do século XVI. Esperamos que, num futuro próximo, o nosso trabalho possa contribuir para motivar reuniões públicas no museu, tal como, em tempos, as relíquias o fizeram.