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Reconstrução do Claustrim do Mosteiro da Madre de Deus

Reconstrução do Claustrim do Mosteiro da Madre de Deus

Desde 2019, em parceria com o Museu Nacional do Azulejo, temos vindo a desenvolver um projeto de reconstrução relativo à evolução do Mosteiro da Madre de Deus. Neste âmbito, exploramos o HBIM (Historic Building Information Modelling) como instrumento de pesquisa histórica e divulgação, dedicado a processos de representação, documentação e preservação do património. Pretendemos desenvolver modelos interpretativos – digitais e físicos – a fim de validar hipóteses de evolução construtiva do mosteiro desde a sua fundação até ao presente. Este inovador processo interpretativo será documentado em memórias descritivas, peças gráficas, representações virtuais e modelos impressos em 3D.

O projeto tem-se centrado no século XVI, período seguinte à fundação do mosteiro, pela Rainha D. Leonor de Lencastre (1509), sobre um palácio pré-existente. Em 2021, foi realizado um projeto-piloto relativo ao desenvolvimento de um modelo digital e impressão 3D do pequeno claustro (ou claustrim) no seu estado original.  Este projeto-piloto pemitiu, também, avaliar o tempo de modelação, impressão e montagem para as fases seguintes e demonstrar a qualidade dos resultados alcançáveis.

Os levantamentos laser scanning, rigorosos e não intrusivos, do edifício no seu estado atual constituiram o ponto de partida, uma vez que cada reconstrução deve começar a partir do que sabemos sobre o presente.

Nuvem de pontos do claustrim.

Modelação a partir da nuvem de pontos do claustrim, no seu estado atual, e relocalização de elementos do 3º nível para o 1º.

Partindo de um modelo representative do estado atual, e similarmente a um processo de engenharia inversa, procurámos chegar aquele que seria o estado mais próximo do claustrim original, ou seja, um pátio do antigo palácio. Aproveitando os instrumentos informativos e organizacionais inerentes ao BIM, conectámos o nosso modelo a informações não geométricas, tais como textos históricos, pinturas e dados arqueológicos.

Os desenhos do arquiteto José Maria Nepomuceno (século XIX) são de particular importância para a compreensão da cronologia do edifício. No século XIX, Nepomuceno reestruturou o convento visando reconvertê-lo numa extensão da Casa Pia de Lisboa (Asilo Maria Pia), instituição dedicada a albergar crianças desprotegidas. Esta fase transformou significativamente o edifício. Presentemente é fundamental compreender o estado original do pequeno claustro, pois o seu desenho inclui várias camadas históricas envolvidas no processo de reconversão espaço-funcional do edifício. O desenho dotado de código de cores inclui elementos em cinzento escuro (elementos pré-existentes, que permaneceram na proposta de Nepomuceno), amarelo (elementos pré-existentes propostos para demolição) e vermelho (elementos novos adicionados por Nepomuceno). Os desenhos de Nepomuceno fornecem assim a representação mais próxima do estado original do claustrim antes dos trabalhos de intervenção. Estes visavam alcançar uma simetria visual do espaço, inexistente na origem. O claustrim era um pequeno pátio que albergava a fonte de Santa Auta (cuja água se acreditava ter propriedades curativas), zonas de lavagens e retretes, e um espaço reservado, que se acreditava servir como capela, onde as freiras guardariam as relíquias de Santa Auta.

A planta de Nepomuceno – século XIX – com nuvem de pontos (estado atual) sobreposta em branco.

Comparando as nuvens de pontos (relativas ao estado atual do edifício) com os desenhos do século XIX verifica-se que o claustrim representado na planta de Nepomuceno é simétrico, com três arcos de igual largura em cada parede. Ao contrário, o claustrim atual não é perfeitamente simétrico, apresentando duas paredes com dois arcos e duas paredes com três arcos. Verifica-se também uma grande discrepância quanto às dimensões. O claustrim real é, curiosamente, muito mais pequeno do que a sua representação do século XIX. No entanto, sabemos que as proporções deste espaço não teriam mudado pois a fonte de Santa Auta, adossada à parede oeste, ainda se encontra na sua localização original. Até hoje, os peritos não têm sido capazes de explicar esta discrepância. Consequentemente, existem duas hipóteses de reconstrução válidas para os arcos do claustrim do século XVI: ou 1) arcos de igual dimensão em todo o claustrim; ou 2) um conjunto mais pequeno de arcos em duas das suas paredes.

O modelo criado a partir da nuvem de pontos (branco) fundiu-se com uma interpretação 3D da planta de Nepomuceno (castanho).

Outra dimensão do projeto-piloto, para além da recriação dos principais elementos estruturais, foi a reconstrução da atmosfera do espaço. Sabemos pelos registos históricos que os azulejos (azulejos pintados) atualmente no coro baixo do edifício, originalmente, revestiam as paredes do claustrim. Azulejos semelhantes deste período podem também ser vistos noutros exemplos de arquitetura manuelina, como o Convento de Nossa Senhora da Conceição em Beja ou o Mosteiro de Jesus em Setúbal.

Reconstruindo a atmosfera do claustrim considerando as duas hipóteses de arcadas.

Ao longo da nossa investigação, temos explorado o modo como os modelos HBIM fornecem meios frutuosos de disseminação pública, criando narrativas virtuais para diferentes públicos – um dos focos deste projeto é a comunicação com deficientes visuais. Os modelos de grande formato, impressos em 3D, revelam-se importantes para sentir as modificações físicas do espaço.

Foto do modelo 3D impresso a cores, codificadas de acordo com as duas fases da história, sendo o castanho parte do palácio original e o branco informação que corresponde tanto à planta de Nepomuceno, como à nuvem de pontos do estado atual do edifício.

O processo de impressão 3D do claustrim implicou vários desafios decorrentes, essencialmente, da necessidade de separar o modelo em partes para facilitar a fase de impressão, e de as religar na fase pós impressão.

Decomposição do modelo digital em peças para impressão 3D.

Para facilitar o posicionamento das peças foi adotado um processo de encaixe com furações, no modelo, e pinos cilindrícos. Estes permitiram não só ajustar as peças na sua posição relativa correta como, também, permitiram suportar o conjunto antes da colagem definitiva das peças. Esta possibilidade permitiu retardar a fase de colagem e analisar mais detalhamente o resultado de conjunto e fazer ajustes antes da fixação definitiva das peças. Tal situação só foi possível porque os pinos cilindricos encaixaram com alguma pressão (mas não em demasia) nas furações conferindo uma certa rigidez ao modelo religado. No entanto, verificou-se que o número inicial de pinos poderia ter sido menor. Também se verificou que havia margem para melhorar a geometria dos pinos com vista a facilitar o seu encaixe nas furações.

Modelo inicial exemplificando a decomposição em elementos impressos em 3D (esquerda). Podemos observar os pinos cilindrícos para ligação das peças bem como a acentuada fragmentação visando evitar os suportes na impressão- caso dos arcos. Modelo final (direita): peças ligadas apenas com os pinos permitindo a análise do conjunto.

Outro aspeto importante decorreu das juntas motivadas pela separação do modelo em peças. As juntas criam linhas de sombra as quais interferem muito na expressão final do modelo. No caso do modelo do claustrim, a partição foi acentuada e as juntas adquiriram um grande impacto visual. Os arcos, por exemplo foram separados das paredes, e depois separados em duas metades de modo a serem impressos deitados e diretamente assentes no prato da impressora evitando totalmente os suportes.

As juntas foram preenchidas com uma massa fina (constituída por cargas ligeiras e coplímeros), de cor branca, muito dúctil, de rápida secagem, e que permite a aplicação de pintura. Este procedimento apenas foi aplicado ao modelo inicial impresso em branco e à parte branca do modelo final – os mais fragmentados.

Juntas entre arcos e paredes: antes do preenchimento com massa fina (esquerda) e depois (direita), caso em que as linhas de sombra desapareceram.

Os trabalhos de pós processamento incluiram ainda outras operações: barramento com massas de preenchimento para nivelar as coberturas abobadadas, lixagem e pintura de superfícies.

Montagem do modelo final (posicionamento e colagem das peças).

Operações de barramento destinadas a anular juntas, e assegurar a continuidade das superficies.

Preparação do modelo para a pintura final: depois da lixagem das superfícies, seguiu-se a proteção das zonas do modelo que não necessitavam de pintura.

Caixa de transporte dos modelos em segurança: foi concebida para anular choques, ou quedas de objetos pesados que, por descuido, pudessem danificar os modelos.

Para além da investigação em si, as atividades deste projeto foram incorporadas numa unidade curricular (do último ano) do programa de Mestrado Integrado em Arquitetura do Instituto Superior Técnico. No momento da redação deste texto, um grupo de estudantes colabora nas reconstruções digitais do núcleo primitivo. O seu trabalho, seguindo um caminho semelhante ao do projeto-piloto apresentado, utiliza uma abordagem híbrida envolvendo a modelação das condições existentes e evidência científica baseada em fontes históricas diversas para permitir testar hipóteses sobre o primitivo edifício.

Agradecimentos:
The Social Sciences and Humanities Research Council of Canada (SSHRC)
New Paradigm / New Tools
Museu Nacional do Azulejo
Carlos Sardinha, arquiteto e professor

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